Por: Ricardo Abramovay
Via: ricardoabramovay.com
A pandemia expôs de maneira clara o maior desafio do esforço global contra a crise climática. Ele pode ser assim resumido: em 2020, ao mesmo tempo em que as emissões globais caíram cerca de 7% (algo sem precedentes na história humana, segundo a Agência Internacional de Energia), a acumulação de gases de efeito estufa na atmosfera bateu novo recorde.
É fácil explicar o aparente paradoxo. Embora as emissões tenham declinado em virtude da contração na economia, o estoque de gases de efeito estufa na atmosfera é muito maior e duradouro que seu fluxo anual. As emissões precisariam cair de 20% a 30% durante um período de seis a 12 meses para que a redução incidisse nas medidas que mostram a acumulação de gases de efeito estufa na atmosfera num determinado ano.
Isso não quer dizer que a meta norte-americana e europeia de reduzir pela metade as emissões líquidas de gases de efeito estufa nos próximos dez anos (e de zerá-las até 2050) seja irrelevante ou inócua. Carros elétricos, energias renováveis modernas, fortalecimento dos transportes coletivos, mudanças nos padrões produtivos e de consumo são transformações que atingem a infraestrutura do mundo contemporâneo — e que estão sendo levadas adiante em boa medida.
O problema é que este empenho, mesmo que bem-sucedido, não livra a humanidade dos efeitos catastróficos dos eventos climáticos extremos, em virtude daquilo que já está na atmosfera e vai permanecer por séculos. A interferência sobre os processos naturais (como a extração e o uso de combustíveis fósseis e o desmatamento) produziu impactos disruptivos no sistema climático que não poderão ser eliminados apenas pelas importantes mudanças nas políticas e nos comportamentos atuais.
Já que não há como voltar atrás — e que mesmo a mudança estrutural nos padrões de produção e consumo é insuficiente para o equilíbrio do sistema climático –, será que o melhor caminho é seguir em frente e usar mais e mais ciência, engenharia e tecnologia no intuito de moderar o controle da espécie humana sobre a natureza? Não é preciso ser especialista no tema para imaginar que essa ideia possa levar a uma espiral tecnológica bem perigosa.
É daí que vem o título do livro de Elizabeth Kolbert ao qual o público brasileiro terá acesso em alguns dias: “Sob um céu branco. A natureza no futuro”. Kolbert recebeu o prestigioso prêmio Pulitzer por sua obra “A Sexta Extinção“, em que mostra as atividades humanas como vetores de uma eliminação de espécies num ritmo que a Terra nunca conheceu antes.
Agora, numa espécie de continuidade do trabalho anterior, Kolbert faz uma reportagem que a conduz a uma rica reflexão sobre a relação entre as sociedades humanas e as tecnologias em que apoiam suas atividades. O livro é um antídoto contra a ideia de que problemas complexos possam ser solucionados com fórmulas simples e balas de prata. Que se trate do desvio do curso de rios, da introdução de peixes exóticos para controlar águas eutrofizadas, da tentativa de salvar a barreira de corais ou o sistema climático, o sincero empenho de cientistas e engenheiros acaba, com imensa frequência, sendo vítima de efeitos imprevistos não antecipados e virtualmente contrários a suas intenções.
Se zerar as emissões de gases efeitos estufa faz parte das mais construtivas utopias contemporâneas (envolvendo justiça climática, redução de desperdício, consciência do consumidor, responsabilidade empresarial e lutas sociais decisivas para a emergência de uma economia regenerativa) o mesmo, nem de longe, pode ser dito das diferentes técnicas até aqui conhecidas para retirar o carbono da atmosfera.
Captar carbono da atmosfera, injetá-lo na água e mineralizá-lo (um processo que levaria milhares de anos, mas para os quais há técnicas que permitem fazê-lo em meses), instalar fazendas solares do tamanho do território da Nigéria para converter carbono em pedra numa extensão correspondente mais ou menos ao tamanho da Venezuela — sem que se saiba onde esta gigantesca pedra seria enterrada — são exemplos de projetos vindos de alguns dos mais importantes laboratórios do mundo, que Kolbert expõe em seu livro.
Plantar árvores em quantidade semelhante à extensão do território norte-americano (incluindo o Alaska), mas com a ajuda da engenharia genética, alterando a cor das plantas para que reflitam e não absorvam a luz solar é outra ideia exposta no livro. Preencher a estratosfera com partículas de diamante que refletem a luz solar também é parte destas soluções. A geoengenharia solar é hoje, nos Estados Unidos, um dos mais avançados temas de pesquisa. Os trabalhos nesta direção são frequentemente financiados por alguns dos mais destacados bilionários globais, como Bill Gates e Elon Musk.
O que mais chama a atenção no livro de Kolbert é que os cientistas por ela entrevistados não manifestam qualquer triunfalismo otimista com relação às soluções em que atuam. Ao contrário, ela os caracteriza como tecnofatalistas. Um deles, Alan Robock, que lidera o Geoengineering Model Intercomparison Project da Rutgers University lista vinte e oito objeções ao avanço da disciplina em que trabalha — desde os impactos que estas tecnologias teriam sobre o regime de chuvas até os efeitos negativos de um céu branco na geração de energia solar. Mas a mais importante objeção está numa pergunta: será que temos o direito de fazer isso?
Nas centenas de modelos em que o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas desenha cenários futuros, a elevação da temperatura global média só se limita a 1,5 ºC com o uso de técnicas de geoengenharia. Mas isso não representa um endosso científico a este tipo de intervenção no sistema climático.
Ainda não existe qualquer governança global sobre estas tecnologias — cujo uso em larga escala pode desencadear um ciclo infinito em que o controle sobre o controle da natureza exigirá mais controles, cada vez mais perigosos e distantes da compreensão e das capacidades de gestão por parte das sociedades. Esta é talvez a mais emblemática expressão da natureza inevitavelmente angustiante de nossa relação com as tecnologias de que dependemos cada vez mais.